sábado, 26 de junho de 2010

A aliança demo-tucana: das suas origens à deflagração da segunda grande crise

Quando falamos em alianças políticas devemos considerar que todas elas, impreterivelmente, são formadas a partir de aspectos programáticos e pragmáticos, sendo que um exerce domínio sobre o outro na constituição da aliança, embora ambos se façam presentes. Tal como um casamento – e a analogia faz todo sentido, posto que partidos aliados têm uma vida praticamente conjugal – as alianças políticas experimentam momentos de amadurecimento e boa convivência, mas também de crises. E a tendência da aliança sucumbir às crises é tão maior à medida que o aspecto pragmático seja dominante.

Podemos dizer, dentro dessa analogia, que a aliança pragmática seria como um casamento movido por interesse circunstancial, ao passo que a aliança programática é o casamento que se dá pela identificação de idéias. E se faz necessário reforçar: toda aliança política tem uma combinação desses dois elementos, variando apenas a proporção que os mesmos assumem dentro da concepção da aliança. Já faz alguns dias, um dos casamentos mais duradouros – porém não menos conturbados – da cena política brasileira pós-redemocratização tem tido suas bases abaladas, justamente em função da forma pela qual um dos lados tem tratado a aliança.

Falamos aqui, naturalmente, da aliança entre o PSDB e o DEM, que como é sabido por todos não é uma aliança nova, já que foi formalizada em 1994, após um período de flerte, como é comum que aconteça antes de todo casamento. Tendo desde então caminhado juntos, apesar de algumas crises no meio do caminho (como aquela ocorrida em 2002), PSDB e DEM são, nessa ordem, os dois maiores partidos de oposição ao governo Lula. Contudo, a forma pela qual o PSDB, que lançou como candidato à Presidência da República o ex-governador de São Paulo José Serra, vem conduzindo a formação de sua chapa em muito tem desagradado ao DEM, uma vez que os tucanos parecem querer tratar os demos como partido menor.

O surgimento do PFL e do PSDB na cena política nacional
Antes, porém, de discutirmos a crise que se deflagra no campo da oposição, é importante entendermos o processo histórico de formação dessa aliança, para que tenhamos uma dimensão exata da crise. Do ponto de vista da história partidária, tanto o DEM (que na época se chamava PFL) e o PSDB surgiram a partir de cisões de outros grandes partidos, ao longo da década de 80, justamente quando o processo de redemocratização de deflagrava de uma maneira mais intensa. O PFL, neste sentido, surgiu em 1985, após uma cisão do PDS (Partido Democrático Social), partido constituído pelos quadros da antiga Arena (Aliança Renovadora Nacional, que apoiou o golpe militar).

No Colégio Eleitoral, em 1984, o PDS havia indicado como candidato a presidente um dos seus membros mais ilustres – o ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf. O grupo político dentro do PDS, que poucos meses depois daria origem ao PFL, não apoiava, contudo, a indicação de Maluf, aproximando-se assim do candidato indicado pelo PMDB, o mineiro Tancredo Neves. E foi nesse processo que teve início o namoro entre o PFL, surgido poucos dias após o Colégio Eleitoral eleger Tancredo Neves, e o grupo político do PMDB que mais tarde formaria o PSDB. A formação do PSDB remonta ao ano de 1988, quando uma ala de parlamentares paulistas do PMDB estava insatisfeita com o governo Sarney, sendo que o estopim da crise interna ocorreu durante a Assembléia Constituinte.

O que se percebe aqui, de antemão, é que tanto o PSDB quanto o PFL tiveram origens parecidas, pois ocorreram a partir de cisões decorrentes de incompatibilidades de pensamentos no âmbito parlamentar. Neste ponto, podemos dizer que PSDB e PFL foram partidos que surgiram de “cima para baixo”. Apesar do ligeiro flerte no Colégio Eleitoral, em 1984, o namoro entre PFL e o recém-criado PSDB não ocorreu de imediato, uma vez que o PFL se mantinha de base de apoio do então presidente Sarney. Dessa maneira, nas eleições presidenciais de 1989, as primeiras feitas de forma direta após 25 anos, PFL e PSDB saíram com candidaturas distintas: o primeiro indicou como candidato Aureliano Chaves, ao passo que o segundo indicou Mário Covas.

No segundo turno daquelas eleições, quando o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva disputava com o ex-governador de Alagoas Fernando Collor de Melo a Presidência da República, PFL e PSDB se afastaram ainda mais: o PFL apoiou a candidatura de Collor, ao passo que o PSDB apoiou a candidatura de Lula. Com a vitória de Collor naquele pleito, o PFL passou a integrar o governo eleito, enquanto o PSDB se mantinha do lado da oposição. Naquele período, jamais se imagina que futuramente os dois partidos iriam se aliar. Com a queda de Collor devido aos escândalos de corrupção em seu governo, em 1992, houve uma coalizão entre a maioria dos grandes partidos para dar sustentação ao novo governo, de Itamar Franco, de modo que o PFL se manteve na base de apoio de Itamar e o PSDB integrou o grupo de coalizão.

A formalização da aliança
Como os dois partidos integravam, agora, um mesmo bloco de coalizão em torno do governo de Itamar Franco, houve uma reaproximação, ainda que modesta, pois as discrepâncias entre PSDB e PFL ainda eram muito nítidas, sobretudo em estados como a Bahia (onde o PSDB fazia oposição clara ao governo de Antônio Carlos Magalhães, do PFL) e no Maranhão. Contudo, as coisas começam a mudar a partir de maio de 1993, quando Fernando Henrique Cardoso, um importante quadro do PSDB que passou de senador por São Paulo a Ministro de Itamar, trocou a pasta das Relações Exteriores pelo Ministério da Fazenda. Ao assumir a Fazenda, FHC tinha como um dos principais desafios a estabilização monetária do país, pois o Brasil trocava constantemente de moeda para tentar controlar a inflação.

Foi neste contexto que, com a colaboração de Pérsio Arida e André Lara Rezende, começou a ser desenhado o Plano Real. Contudo, para que o plano, com clara inspiração da Proposta Larida (de 1982), saísse do papel, era fundamental que o Congresso Nacional aprovasse o “Fundo Social de Emergência”, que permitiria ao governo federal dispor de 15% a 20% do Orçamento da União para operacionalizar o plano. O PSDB, do então ministro FHC, não tinha maioria no Congresso, de forma que era fundamental o apoio do PFL para aprovação. E o PFL, de maneira bastante astuta, garantiu a aprovação do Fundo Social de Emergência. Este foi o exato momento que o PSDB foi picado pela “mosca azul”, dando início à sua guinada à direita.

A formalização da aliança PSDB-PFL, apesar da situação de estranhamento inicial, foi questão de semanas. Com a indicação do nome do vice (Marco Maciel, político influente em Pernambuco), o PFL integrou formalmente a chapa que garantiu à vitória de FHC para a Presidência da República em 1994. E aqui é interessante destacar que diversos analistas políticos concordam que a vitória do PSDB na eleição presidencial de 1994 só foi possível graças à aliança com o então PFL e não ao Plano Real em si, como uma parte dos estudiosos alega. Faz todo o sentido se considerarmos dois aspectos: 1) foi graças à aproximação com o PFL que se teve a aprovação do Plano Real; 2) o PFL trouxe para a aliança um forte peso do Nordeste, que viabilizou a vitória de FHC.

Dessa forma, no segundo semestre de 1994 oficializou-se o “casamento” entre PFL e PSDB. Além de compor o governo por meio do vice Marco Maciel, o PFL também recebeu cargos de importância e foi “braço direito”, sem quaisquer trocadilhos, do PSDB para a aprovação de medidas que marcaram o governo tucano, tais como a Lei das Privatizações, que a partir de 1995 deu início a um processo de desmonte do Estado, e também a aprovação da emenda constitucional que possibilitou a reeleição do então presidente FHC em 1998. Nos dois mandatos de FHC, o PFL, especialmente através do seu maior cacique na época, o baiano Antônio Carlos Magalhães, teve um papel central nas decisões do país, a ponto do nome do então deputado do PFL-BA Luiz Eduardo Magalhães (filho de ACM) ser cogitado, antes da sua morte em 1998, como possível sucessor de FHC.

A primeira grande crise na aliança PSDB-PFL
Assim como em um casamento, nem tudo são flores em uma aliança política e, passado o tempo, surgiram as primeiras crises entre PSDB e PFL. A primeira grande crise que a aliança viveu foi deflagrada em abril de 2002, por conta de denúncias contra a pré-candidata do PFL à Presidência da República, a governadora do Maranhão Roseana Sarney. O envolvimento de Roseana em denúncias de corrupção investigadas pela Polícia Federal fez com que muitos líderes do PFL ligassem o episódio a uma manobra do PSDB para tentar inviabilizar a candidatura de Roseana. Vale destacar que a governadora do Maranhão chegou a estar em 2º lugar nas pesquisas de intenções de voto para a sucessão presidencial, e o PSDB queria emplacar o nome do então ministro da Saúde, José Serra, como sucessor de FHC.

Embora o PSDB tenha negado o envolvimento no episódio, o fato é que em abril daquele ano, Roseana retirou sua pré-candidatura à Presidência da República e o PFL rompeu formalmente com o PSDB. Após oito anos de “casamento”, PSDB e PFL viveram sua primeira crise e o candidato tucano à sucessão presidencial naquele ano, José Serra, não pôde contar com o apoio do antigo aliado. Apesar de Roseana ter apoiado a candidatura de Lula e ter se dedicado inclusive a pedir votos para o petista, o PFL oficialmente não apoiou nenhum candidato, de modo que o grupo interno ligado aos Sarney apoiou Lula e os grandes caciques apoiaram Serra no segundo turno, ainda que de forma não-oficial.

A vitória de Lula e o início do seu governo em 2003 reaproximaram PSDB e PFL, agora ambos na oposição. A borracha passada nos acontecimentos do ano anterior era algo natural e de interesse dos dois lados: pelo lado do PSDB, ele precisava de um aliado forte para fazer oposição ao PT, que agora era governo; e pelo lado do PFL, a recomposição da aliança era estratégica com vistas às eleições de 2006. Com isso, superou-se a crise entre os antigos aliados e PSDB e PFL voltaram a jogar juntos. Tanto que em 2006, o partido voltou a compor com o PSDB uma chapa para disputar a Presidência da República, indicando o nome do senador pernambucano José Jorge como vice do então candidato tucano à Presidência Geraldo Alckmin.

Os efeitos colaterais da crise de 2002 e o surgimento do DEM
É importante que se diga que apesar da aparente superação da crise entre PFL e PSDB, a ponto dos dois saírem juntos novamente numa chapa em 2006, havia uma boa dose de artificialidade aí. Setores do PFL chegaram a cogitar, antes das eleições de 2006, uma candidatura própria: tanto que uma das principais lideranças do partido, o então prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, chegou a declarar, assim que foi reeleito à Prefeitura do Rio em outubro de 2004, que não cumpriria todo seu mandato, pois deveria renunciar em 2006 para concorrer pelo PFL à Presidência da República. Contudo, após a crise que o governo Lula atravessou em 2005, a oposição julgou que, se novamente unida, teria maiores chances de recuperar a Presidência da República.

E foi justamente por isso que o PFL decidiu naquela época apostar numa aliança: mais pelo interesse em voltar ao governo do que propriamente uma “superação” do episódio ocorrido anos antes. Dessa maneira, após a derrota da chapa PSDB-PFL nas eleições de 2006, voltou a ganhar força dentro do PFL a idéia de que o partido passasse a caminhar com as próprias pernas e indicasse, em 2010, um candidato próprio à Presidência da República. Procurando recuperar sua imagem, desgastada pelo péssimo resultado que o partido teve nas urnas em 2006, o PFL mudou de nome em março de 2007, passando a se chamar “Democratas” (DEM). A mudança do nome do partido também foi acompanhada por uma alteração no núcleo de comando, que se deslocou do Nordeste para o Sudeste, com a eleição de Rodrigo Maia (RJ) presidente da sigla.

A aspiração de uma candidatura própria à Presidência da República, em 2010, por parte do DEM (ex-PFL) novamente esbarrou numa questão estratégica: o elevado índice de aprovação do governo Lula, superior aos 75%, exigia da oposição uma união para ampliar suas chances na disputa eleitoral. Por isso, a cúpula do DEM achou conveniente unir forças em torno da candidatura tucana de José Serra, exigindo, contudo, como contrapartida a indicação do vice, como sempre foi de costume nas alianças PSDB-DEM/PFL. Com o crescimento da candidatura governista de Dilma Rousseff (PT), o DEM chegou a abrir mão da vaga de vice no caso do ex-governador tucano de Minas Gerais, Aécio Neves, aceitar compor chapa com Serra. Porém, com a recusa de Aécio, o DEM voltou a insistir na idéia de indicar o vice.

A construção da segunda grande crise na aliança
E é exatamente por esta razão que se deflagrou nos últimos dias o que parece ser a segunda grande crise entre PSDB e DEM. Primeiramente, a demora de José Serra em escolher o seu vice gerou uma certa irritação e descontentamento na cúpula do DEM, de modo que as pressões do partido sobre o PSDB se tornaram cada dia maiores. Na semana passada, porém, cresceu a expectativa de que Serra anunciaria um nome tucano para ocupar a vaga de vice em sua chapa, o que foi recebido de forma hostil no meio dos demos. A expectativa foi consolidada, finalmente, na sexta-feira, 25, quando o PSDB indicou o nome do senador tucano pelo Paraná, Álvaro Dias, para vice de Serra. A notícia caiu como uma bomba na base de apoio da oposição, sendo que PPS e PTB aceitaram o nome, mas o DEM se recusa a abrir mão da vice.

A crise instalada no campo oposicionista chegou ao ponto do deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO), uma das maiores lideranças do partido, anunciar por meio da sua página no serviço de microblog Twitter, na noite de sexta-feira, que defenderia na Executiva do DEM um rompimento com o PSDB. Neste sábado, 26, Caiado voltou a afirmar que “se o PSDB manter [sic] a decisão de não cumprir o acordo de ceder a vice de Serra, ganhará corpo a decisão do DEM romper a aliança”. Na outra ponta, o vice indicado pelo PSDB, o senador Álvaro Dias, minimizou o episódio, afirmando que “o DEM está cumprindo o seu papel e suas lideranças atuam para valorizar o partido, mas, ao final, o que vale é o projeto nacional. No final, todos fazem suas concessões”.

Contudo, a impressão que se tem não é de que o DEM irá aceitar a decisão do PSDB de compor uma chapa puro-sangue. E se aceitar e formalizar o apoio a Serra, na convenção nacional do partido no próximo dia 30, ainda assim tudo caminha para um cenário em que o DEM não se empenhará para levar adiante a candidatura de Serra. Tal como em um casamento, as lideranças do DEM se sentem traídas pelo outro lado e, diante destas circunstâncias, ainda que o casamento continue “no papel”, comprometimento e lealdade definitivamente não podem ser esperados do lado que se sentiu lesado. Vamos aguardar os próximos capítulos dessa nova crise na conturbada relação entre o PSDB e o DEM.

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