quinta-feira, 3 de junho de 2010

Falando de compotas e dossiês

“Quanto a mim, lá estava, solitário e deslembrado, a namorar certa compota da minha paixão. No fim de cada glosa ficava muito contente, esperando que fosse a última, mas não era, e a sobremesa continuava intata. Ninguém se lembrava de dar a primeira voz (...). Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi em voz baixa o doce; enfim, bradei, berrei, bati com os pés (...). Não foi outro o delito do glosador: retardara a compota e dera causa à minha exclusão. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingança, qualquer que fosse, mas grande e exemplar, coisa que de alguma maneira o tornasse ridículo. Que ele era um homem grave o Doutor Vilaça, medido e lento, quarenta e sete anos, casado e pai. Não me contentava o rabo de papel nem o rabicho da cabeleira; havia de ser coisa pior. Entrei a espreitá-lo, durante o resta da tarde, a segui-lo, na chácara, aonde todos desceram a passear. Vi-o conversando com Dona Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma robusta donzelona, que se não era bonita, também não era feia (...).
- O Doutor Vilaça deu um beijo em Dona Eusébia! Bradei eu correndo pela chácara.
Foi um estouro esta minha palavra; a estupefação imobilizou a todos; os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, à socapa, as mães arrastavam as filhas pretextando o sereno”. (ASSIS, Machado, in Memórias Póstumas de Brás Cubas)

A traquinagem do menino Brás Cubas, aos seus nove anos de idade, arranca boas risadas do leitor machadiano. Mas também revela um traço importante da personalidade do protagonista dessa célebre obra da Literatura Brasileira: o seu capricho e a sua insistência, bem como a sua mente ardilosa, capaz de planejar com ricos detalhes um plano de vingança contra qualquer outra pessoa que atrapalhasse os seus planos. Brás Cubas, diante do desespero de não ter a almejada compota para saciar sua vontade, procura se vingar do Doutor Vilaça, a quem ele atribui a culpa pelo seu pai, distraído com a conversa, não ter lhe dado o doce. O personagem machadiano, do alto do seu ego, se vitimiza e transforma a verdadeira vítima em culpado por não terem lhe dado a compota.

Feito esse diálogo com a obra de Machado de Assis, nos vem à mente de forma imediata o velho clichê de que “a vida imita a arte”. Ora, troquemos o ano de 1814, no qual se passa essa parte da história, pelo ano de 2010. Ao invés do cenário de uma reunião familiar em que se discutia a queda de Napoleão adotemos o cenário das eleições presidenciais no Brasil. Em lugar da compota, o prêmio para personagem-garoto, a presidência da República e, no lugar do travesso menino Brás Cubas, o ardiloso pré-candidato do PSDB, José Serra. Naturalmente, do outro lado, ao invés do Doutor Vilaça, a pré-candidata do PT, Dilma Rousseff, e sua coordenação de campanha. É possível estabelecermos essa conexão entre política e literatura?

Ora, se o leitor tem acompanhado o noticiário político da última semana, deve ter percebido que a comparação cai como uma luva ao descrever o comportamento de José Serra e seus aliados para tentar desestabilizar a pré-candidatura do PT. Movido por um desespero generalizado que toma conta da direção de sua campanha, face à sua contínua queda nas pesquisas de intenções de voto, o tucano alimenta uma farsa, procurando, com isso, afetar o campo governista. Neste sentido, o vazamento de um suposto “dossiê” feito pelo alto comando da campanha petista contra José Serra é o pivô de todo ardil montado pela oposição e oportunamente alimentado pela grande imprensa a seu serviço. No tal “dossiê” feito por petistas, conforme acusação dos tucanos, constavam informações sobre uma sociedade entre a filha de José Serra, Verônica Serra, e a irmã do banqueiro Daniel Dantas, Verônica Dantas.

A divulgação de notícias dando conta do suposto “dossiê”, que não passa de uma tentativa ardilosa do demo-tucanato para reeditar o escândalo dos “aloprados do PT” de 2006, começou no final de semana com uma matéria da revista Veja e logo ganhou as manchetes dos principais jornais. Lideranças da oposição tomaram seus lugares no palco e deram início ao teatro, que sabem fazer muito bem, bradando em altas vozes e cobrando explicações de Dilma. Na terça-feira, foi a vez do próprio Serra, a encarnação mais que perfeita do menino Brás Cubas, acusar Dilma de envolvimento com a produção do tal “dossiê”. Contudo, a “traquinagem” de Serra e seus aliados, tal como ocorrido na obra machadiana, não se sustenta e o máximo que faz é arrancar risos da platéia, que já conhece muito bem o modo operandis da oposição.

Neste sentido, cabe destacarmos três contradições centrais no escândalo criado pela oposição e inflado pela grande imprensa:

01. Contradição temporal do “dossiê”: já que começamos este texto falando de um personagem da literatura, sigamos nesta mesma linha – não é preciso ser nenhum Sherlock Holmes para saber que um dossiê só tem efeito desejado se usado pela pessoa ou grupo que o detém no momento adequado. Ora, partindo dessa premissa, se de fato o alto comando da campanha de Dilma tivesse feito um dossiê contra Serra, não seria razoável pensar que o conteúdo do “dossiê” tivesse vindo à tona quando o tucano liderava com folga as pesquisas de intenção de voto? Afinal de contas, se os petistas foram tão sagazes para elaborar um documento contra Serra, como afirmam os tucanos, também teriam tido a esperteza de avaliar a melhor hora para divulga-lo.

E definitivamente este não parece um momento em que haja necessidade de vazar informações de um suposto “dossiê”, afinal de contas todas as pesquisas de intenção de voto mostram um forte crescimento de Dilma, com a petista ligeiramente à frente do tucano. O jogo rasteiro de tentar incriminar o adversário para desestabilizar sua campanha é feito, via de regra, por quem está perdendo o jogo e não por quem está ganhando. Se Brás Cubas tivesse se saciado com a compota, ele não teria feito a traquinagem com o Doutor Vilaça. E no cenário eleitoral brasileiro, quem está perdendo não é o PT e sim a oposição. Ponderado isto, cabe a pergunta: não soa estranho que Dilma, à frente de Serra, dispenda energia para incriminar o tucano? Não é muito mais razoável pensar que esse “dossiê” é criação da própria oposição, para se vitimizar e tentar desestabilizar o outro campo, como feito pelo personagem machadiano?

02. Contradição na natureza sigilosa da informação: em qualquer disputa, se um dos lados lança mão de um dossiê para atingir o outro, é recomendável que o conteúdo do documento seja algo inédito e até então sigiloso. Assim, quando a informação vem à tona, ela provoca um grande estardalhaço e aí sim consegue desestabilizar o adversário. Voltemos ao suposto “dossiê” que a oposição quer jogar na conta do PT: as informações que, segundo a grande imprensa, constam no documento diz respeito à sociedade da filha de José Serra, Verônica Serra, com a irmã do banqueiro Daniel Dantas, Verônica Dantas, em uma empresa chamada “Decidir.com”, com sede em Miami, nos Estados Unidos.

Porém, de sigilosas essas informações não têm nada. Uma simples busca no site de pesquisa “Google” pelo nome de “Verônica Serra” já mostra inúmeros textos revelando essa suposta sociedade da filha do tucano com a irmã do dono do Opportunity. E mais: existem textos circulando na rede desde 2004 tratando dessa questão. Ou seja, para que a coordenação de campanha do PT se daria ao trabalho de produzir um suposto “dossiê” com informações que já circulam na internet há mais de cinco anos e que não trazem nada de revelador ao público em geral? Esta é mais uma contradição apresentada na farsa montada pela oposição e transformada em “escândalo” pela grande mídia.

03. Contradição no foco da investigação: a oposição exige investigações sobre o suposto “dossiê” atribuído ao comando de campanha de Dilma e, sem perceber, acaba dando um tiro no próprio pé. Afinal de contas, o que é mais grave e passível de investigação: a produção do suposto “dossiê” pela coordenação da campanha petista ou o envolvimento da filha de Serra numa sociedade com Verônica Dantas, que chegou a ser presa por ocasião da Operação Satiagraha da Polícia Federal? Sim, porque se a filha de Serra não está envolvida em nenhum escândalo, então não há porque a oposição se contrapor a uma investigação minuciosa, assim como o PT não se contrapõe que se investigue a produção do tal “dossiê”.

Porém, quando a hipótese de investigar essa suposta relação da filha de José Serra com a irmã de Daniel Dantas, a oposição brada mais alto ainda, corroborando a hipótese de que o tal “dossiê” atribuído à campanha de Dilma não passa de uma farsa, muito mal elaborada, diga-se de passagem, pelos próprios tucanos. Não conseguindo mais segurar o escândalo em torno do nome da filha de José Serra, o que a oposição quer agora é transformar um fato que pode sim ter ocorrido – a sociedade entre Verônica Serra e Verônica Dantas – em um dossiê. Com isso, o tucano passaria a ser a vítima da vez! Uma farsa que poderia até ter dado certo, não fossem as grandes contradições presentes nela. Percebe-se, assim, que não é somente ética que falta à oposição, mas uma boa dose de visão estratégica do jogo político.

Na política, assim como na literatura, muitas vezes não é preciso chegar ao final para saber o destino da história e de seus personagens. Brás Cubas, por exemplo, que escreveu o seu livro depois de morto, terminou a sua vida sozinho e por isso se tornou um defunto-autor,a fim de refletir sobre suas armações feitas em vida. Fato é que ele começa contando sua história a partir da sua morte – e neste caso específico começamos já sabendo o final – mas a cada página lida na obra de Machado, entendemos o porquê apenas onze pessoas compareceram ao seu enterro. E quanto ao pré-candidato Serra e à oposição? Imaginar o seu futuro político não demanda muito esforço, já que, quem exerce esse tipo de prática – a de criar farsas para incriminar o outro lado -, certamente não deve ir muito longe na vida pública.

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