segunda-feira, 21 de junho de 2010

Serra abandona a máscara do "pós-Lula" e eleva tom das críticas ao governo

Abandonando o discurso de uma continuidade quase governista, o candidato da oposição José Serra (PSDB) cada dia mais começa a apresentar seus contrapontos ao governo Lula, ampliando o tom das críticas à condução da política econômica, sobretudo no que se refere à política de câmbio e juros, e também a áreas como saúde e segurança. Este tipo de posicionamento é o que se espera do candidato tucano, já que um discurso de “continuidade” fica estranho, para dizer o mínimo, vindo do campo da oposição. Assim, Serra ensaia uma politização do discurso, mostrando ao eleitor cada dia mais sua face “anti-Lula”.

Isso fica muito claro na entrevista que o tucano deu esta semana à revista Isto É, onde ele aponta suas principais críticas ao governo Lula, deixando claro o que faria diferente caso fosse eleito. De antemão, o que se percebe é que o candidato propõe muito mais mudanças do que continuidades, deixando transparecer nas entrelinhas o seu aspecto centralizador – embora no decorrer na entrevista ele próprio negue que o seja -, que de certa forma é sua marca registrada. A seguir os principais trechos da entrevista de Serra à Isto É, com alguns comentários feitos por este blog:

ISTOÉ – A economia acaba de registrar um crescimento de 9% no trimestre, a taxa de desemprego tem baixa recorde e 35 milhões de brasileiros foram incorporados à classe média. Sua campanha prega que o Brasil “pode mais”. Em que campos aconteceriam estes avanços?
Serra – Bom, manter uma taxa de crescimento elevada já significa poder mais. Crescimento sustentado ao longo dos anos sempre é objetivo ambicioso, difícil de ser alcançado. Para se obter isto é preciso enfrentar os problemas que vêm por diante, que são basicamente a insuficiência de investimentos na infraestrutura e a área do comércio exterior. Nós estamos com uma evolução negativa nas contas externas, com muitos problemas pelo lado da produção. Há pouco dinamismo das exportações, comparadas às importações, e temos que agir. É necessário ter uma outra política de comércio exterior, muito mais agressiva.

ISTOÉ – O que falta na política externa brasileira?
Serra – Falta maior agressividade econômica. Nossa capacidade de negociação, de abertura de mercados, foi utilizada justamente em áreas que não rendem muito.Temos uma negociação comercial tímida. Precisamos de uma política mais agressiva também pelo lado da defesa comercial, reagindo a práticas ilegais.O Brasil adotou uma abertura comercial na época do Collor no estilo cavalaria antiga: rápida e malfeita. Se descuidou da alfândega e desses mecanismos de proteção nos quais os Estados Unidos são os melhores do mundo.

Comentário - O candidato aponta dois problemas centrais na sua ótica: a questão da infra-estrutura e das contas externas. Sobre infra-estrutura, é incorreto dizer que os investimentos têm sido insuficientes: devemos lembrar que o Brasil ficou 25 anos sem investir no setor, o que acabou, naturalmente, criando gargalos. Um dos maiores gargalos enfrentados na área foi justamente no governo FHC: o racionamento de energia elétrica, decorrente de uma insuficiência da oferta de energia frente ao forte crescimento da demanda. Desde o primeiro mandato do presidente Lula, o setor de infra-estrutura tem tido uma prioridade destacada na agenda do governo federal: primeiro, com as chamadas Parcerias Público-Privadas e, em seguida, a partir de 2007, com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Além do governo Lula ter resolvido definitivamente o gargalo que havia no setor elétrico, foram ampliados sobremaneira os investimentos em ferrovias, portos, aeroportos, hidrovias, criando condições para uma dinamização da logística do país.

No que se refere ao setor externo, as exportações têm registrado um forte crescimento e um crescimento bom no que diz respeito à diversificação dos parceiros comerciais. E aí está uma grande diferença entre o governo Lula e o governo FHC: enquanto os tucanos buscaram os parceiros de sempre, a saber Estados Unidos, União Européia e poucos outros, o governo Lula ampliou o leque de importadores dos nossos produtos, abrindo possibilidades na América Latina, Ásia e também na África. Desde 2008, as importações de fato têm crescido em ritmo superior às exportações, mas isso não é algo negativo, como dito por Serra. Simplesmente revela duas coisas: 1) o efeito da crise econômica sobre a renda dos nossos compradores; e 2) a existência de demanda interna, evidenciando o bom momento econômico do Brasil.

ISTOÉ – O sr. também tem falado em mudanças no câmbio e nos juros. O que aconteceria em seu governo?
Serra – Há uma combinação ruim de câmbio e juros. O Brasil é o país cuja moeda mais se valorizou no mundo, sem que a conta comercial externa estivesse melhorando. Você pode ter muito ingresso de capital, mas é dinheiro que só vem enquanto o juro estiver alto. Não é um investimento sólido. Nós estamos batendo alguns recordes: temos, disparado, a maior taxa de juros do mundo...

ISTOÉ – Mas há muito tempo, não?
Serra – Não estou dizendo que é neste governo. Olhando para a frente, temos a maior taxa de juros do mundo e a maior carga tributária dos países emergentes. Isto é dado do Fundo Monetário, não invenção maquiavélica de oposição. Nossa taxa de investimento governamental é a penúltima do mundo.

ComentárioO candidato se apressa em dizer que o Brasil tem a maior taxa de juros do mundo, mas se esquece de reconhecer que foi justamente no governo Lula que a taxa básica de juro da economia – a Selic – registrou trajetória declinante. Para se ter uma idéia, em dezembro de 2002, quando terminou o governo FHC, a Selic estava em 25% ao ano, patamar que foi sendo gradativamente derrubado e atualmente é de 10,25% ao ano. Ou seja, o juro pode até estar alto considerando-se os padrões internacionais, porém ele é muito menor do que aquele registrado no período de governo tucano. Sobre o ingresso de capital, é preciso que se diga que a procura por títulos brasileiros no mercado financeiro internacional tem crescido ano a ano, não por motivo de simples especulação, mas sim devido às melhoras substanciais dos fundamentos da economia brasileira.

ISTOÉ – No atual governo, o Ministério da Fazenda e o Banco Central têm praticamente o mesmo nível. Como seria no seu governo?
Serra
– No meu governo serão instituições absolutamente entrosadas. O ministro da Fazenda, o ministro do Planejamento, o presidente do Banco Central e o secretário do Tesouro vão estar todos afinados. Eu não sou de botar contrapesos. No meu governo não terá um que pensa de uma maneira e outro que pensa de outra maneira. Tem que trabalhar junto.
ISTOÉ – O presidente do Banco Central será subordinado ao ministro da Fazenda?
Serra – Como foi sempre. É o presidente que escolhe. Mas não será alguém que o ministro da Fazenda não queira. Ele vai ter que dar o aval. Na verdade, o presidente do Banco Central só ganhou status de ministro para evitar um processo contra o Meirelles. Lembram? Não foi nenhuma doutrina econômica. Veja, o Fernando Henrique trocou duas vezes o presidente do Banco Central, sem problemas.

ComentárioQuando o candidato diz que no seu governo “não terá um que pensa de uma maneira e outro que pensa de outra maneira”, deixa transparecer o sistema de pensamento único que tanto caracteriza os governos tucanos: uns poucos ditam as regras e os demais acatam. Ora, diversidade de opiniões sobre um determinado tema não quer dizer que não se trabalhe junto. Pelo contrário, quando há diversidade de pensamento, existe um ganho de sinergia no trabalho, já que as idéias são melhor amadurecidas. Sobre a questão do Banco Central, Serra não deixa claro se manterá a autonomia da autoridade monetária para decisão dos rumos da política monetária. É importante que se diga que o BC deve ser autônomo, como tem sido no governo Lula, tomando suas decisões sobre os juros por razões técnicas e não políticas. A resposta do candidato deixa margem para duvidarmos se os motivos técnicos continuarão sendo prioritários no caso de um eventual governo seu.

ISTOÉ – Como o sr. acha que se deve conduzir a relação entre juros e câmbio?
Serra
– É muito difícil, tem que ser levado com muita maestria. Agora, num período de aceleração da inflação, segundo o Banco Central, não é momento de se fazer isto. Já no auge da crise, no final de 2008, certamente era. O Brasil foi o único país do planeta que não baixou os juros. Sem ameaça de inflação, com deflação, esta conjuntura não foi aproveitada. Nove entre dez personalidades do mercado financeiro, em conversas não públicas, diziam que era hora de ter feito isto. Esta coisa de inflação versus estabilidade, em que o monetarista procura estabilidade e o estruturalista prefere a inflação à estabilidade, é tudo bobagem. Nenhum estruturalista jamais disse isto.

ComentárioQuando Serra diz que o juro não foi reduzido em 2008, ele se equivoca. A Selic chegou ao patamar de 8,75% ao ano, sendo corrigida posteriormente por conta de acelerações inflacionárias em alguns setores da economia. Como economista, o candidato sabe melhor do que ninguém que não se pode, mesmo num cenário de deflação, derrubar de uma só vez a taxa de juros, pois isso pode ter um efeito perverso sobre as expectativas gerais dos agentes. O que era para ser um incentivo, pode acabar sendo entendido de outra forma pelos agentes e afetando suas expectativas em relação à renda futura, mergulhando o país numa recessão. A política monetária deve ser feita sem alterações muito radicais – tanto do lado da elevação quanto da queda dos juros – pois ela tem forte influência na formação de expectativas racionais dos agentes econômicos.

ISTOÉ – O sr. é centralizador, como o acusam?
Serra
– É engraçado... Eu não sou centralizador no trabalho de governo. As pessoas têm uma liberdade enorme para trabalhar comigo. Eu monitoro, o que é diferente. Acompanho, cobro resultados e, quando o assunto não está andando, eu mergulho. A centralização é ineficiente e eu procuro sempre render naquilo que estou fazendo. Se você ficar centralizando tudo, prejudica os resultados. Sou demasiado racional para viver num esquema dessa natureza.

ISTOÉ – Que outros problemas o sr. observa no governo?
Serra
– De economia a gente já falou. Há outras questões vitais como a saúde. Existe uma clara percepção da população, não minha, a respeito da deterioração do atendimento da saúde no Brasil. Outro aspecto fundamental é a segurança, que deixou de ser um problema lateral, como sempre foi visto historicamente.
ISTOÉ – A legislação trata a segurança como um problema estadual, não federal. O sr. vai mexer nesta legislação?
Serra
– Se for preciso, mexemos na própria Constituição. Mas não creio que seja. O governo federal não pode mais ser só um observador da segurança, dando um dinheirinho aqui, fazendo uma coisinha ali. O crime não tem fronteiras, nem entre países, o que dizer entre Estados. O assunto da fronteira também tem que ter uma solução. Não podemos ter uma fronteira seca deste tamanho praticamente desguarnecida.

ComentárioSerra diz que existe uma clara percepção da população e não sua sobre a deterioração do atendimento da saúde no Brasil. Ao enfatizar que a percepção não é sua, o candidato quer dizer que não concorda com ela, certo? Agora, seria interessante que o candidato citasse o estudo que apurou essa “percepção” da população sobre uma piora da saúde no Brasil. Caso contrário, fica parecendo conversa de oposição mesmo. No que diz respeito à segurança pública, o governo Lula tem sido muito exitoso na área. E aqui é importante que se diga o seguinte: não é que a segurança pública não avançou nestes últimos anos, pois em governos anteriores a questão era ainda mais séria. O que acontecia é que em outras épocas, havia tantos problemas no Brasil – como inflação, desemprego alto, crescimento baixo, defasagem salarial – que a segurança era vista como um problema secundário. Atualmente, como o governo Lula resolveu os principais problemas do país, é natural que um assunto que estava secundarizado passasse a ser destaque na pauta.

ISTOÉ – O sr. acha que estamos vivendo num Estado policial?
Serra
– Não chega a isto. Não quero fazer comparações, vou falar apenas o que eu penso sobre esta questão. Para uma grande parte da esquerda, a democracia era vista como uma coisa tática, menor. Nunca se debruçaram sobre questões como a forma de governo, por exemplo. Para a direita, a democracia era vista apenas como consequência. Curiosamente, os dois lados sempre tiveram um enfoque economicista a este respeito. Os dois casos são insuficientes.
ISTOÉ – Agora o sr. é vítima desses dossiês. Mas seus adversários dizem que o sr. também perseguiria inimigos políticos. Colocam na sua conta, por exemplo, o caso Lunus, que atingiu a Roseana Sarney.
Serra
– O que é evidentemente uma estupidez. Falam, mas nunca apareceu o mais remoto indício para começar a ser investigada qualquer coisa a este respeito. Já no dossiê Cayman o pessoal foi preso. O dossiê dos aloprados deu prisão. E agora deu a maior confusão a ponto de mandarem gente embora. Eu não tenho cabeça para este tipo de coisa.
ISTOÉ – O sr. acha que a candidata Dilma é responsável por estes dossiês?
Serra
– Como dirigente da campanha, claro. Não estou dizendo que foi ela quem fez a coisa. Mas quando acontece algo assim se deve agir imediatamente. Abominar aquilo ou assumir a responsabilidade e tomar medidas. Mas se passaram dias e não aconteceu nada. Se vocês pegassem o blog da Dilma tinha lá boa parte das ignomínias que estavam nos dossiês. Parece que eram dois dossiês: um que já estava pronto, e que dignatários da campanha da Dilma comentaram com a imprensa, e outro que iria ser preparado. Pois todo este material está posto, a cada dia, no blog da Dilma. Nos últimos dias retiraram.

ComentárioNão houve qualquer envolvimento da cúpula da campanha de Dilma com produção de dossiês contra Serra. Como dito por este blog diversas vezes, a tática de fabricação de dossiês serve muito mais aos interesses de Serra do que aos do PT. Ora, para que uma candidatura que está com cenário bem mais favorável, como é o caso de Dilma, faria um dossiê contra o outro lado? Isto faria sentido se o PT não tivesse um cenário nebuloso, mas não é isso que as pesquisas de intenções de voto têm mostrado.

ISTOÉ – Como seriam, no seu governo, as relações do Brasil com Cuba e Venezuela, por exemplo?
Serra – Normais. Sou ferrenho defensor da autodeterminação. Agora, se tiver chances de fazer pesar uma posição em defesa dos direitos humanos, por exemplo, eu faria. Se houver uma votação num órgão de direitos humanos em prol da maior liberdade em Cuba, o Brasil votará a favor.

ISTOÉ – E quanto às relações do Brasil com o Irã?
Serra – Eu dou ao governo o crédito da boa vontade que tiveram. Agora, eu não confiaria no parceiro. Eu não confiaria no Ahmadnejad. Convenhamos, um país que condena um jornalista a 16 anos e condena à forca manifestantes não é um país que respeita direitos humanos. Eu não acho que o Lula tenha simpatia pelo regime de lá. Mas deu um crédito de confiança que eu não teria dado.

ComentárioAqui fica clara a divergência de Serra com relação à política externa do governo Lula. Embora o tucano não diga com todas as letras, fica bastante perceptível nas entrelinhas que em um eventual governo seu, o Brasil voltará a ter uma política externa de submissão, alinhada aos interesses dos Estados Unidos.

ISTOÉ – O sr. é favorável ao sistema de cotas para negros?
Serra
– Sou a favor de políticas afirmativas diversas, como a Unicamp fez. É um bom esquema que leva em conta escola pública, cor e conhecimentos.
ISTOÉ – Por cor apenas, não é a favor?
Serra – Eu acho que a gente tem que fazer um balanço das diferentes experiências. Mas, em geral, sou a favor das ações afirmativas.
ISTOÉ – Nessa época, o sr. pensava em grandes estadistas, certamente. Quem eram?
Serra – Churchill e Roosevelt, até hoje.
ISTOÉ – Ninguém pela esquerda?
Serra
– Eu tinha pelo Fidel, mas aí quando já era estudante. Ele me desiludiu. Conheci o Fidel, estive com ele uma noite conversando e não vi motivos para ficar entusiasmado.

ISTOÉ – E no Brasil, alguma referência?
Serra
– Juscelino, sem dúvida. Eu tinha alguma admiração por ele.

ISTOÉ – E Getúlio Vargas?
Serra
– Sobre Getúlio eu tinha ideias contraditórias. É que na Mooca havia muitos comunistas. E desde criancinha eu vi gente sendo perseguida. Meu bairro era um reduto de comunistas e sindicalistas que, na época do Estado Novo, sofreram muito. Isto sempre me deixou com um pé atrás com Getúlio.
ISTOÉ – E o Jango, com quem o sr. se reuniu quando era presidente da UNE?
Serra
– Eu cometi erros eleitorais. O primeiro foi ter votado no Jânio, em 60, na minha primeira eleição. Votei nele embora fosse simpático ao Lott. Foi um voto errado. O Jango, que conheci, era um boa-praça, um bom coração. Mas acho que ele não estava bem preparado para a complexidade que o Brasil já era. Pegou um rabo-de-foguete.
ISTOÉ – Em relação ao governo Lula, o sr. está à esquerda ou à direita?
Serra
– Do ponto de vista da análise convencional, eu estou à esquerda. Só que eu acho que esta análise hoje é muito pobre. Hoje você pega pessoas que se dizem de esquerda e são, na verdade, reacionárias, defendendo interesses estritos de uma corporação. Esquerda, tal como existia, não existe mais, praticamente desapareceu. Este debate, então, fica uma espécie de ficção.

ComentárioSerra dizendo que está à esquerda de Lula é, sem dúvida, a piada da semana e não cabe estender quaisquer comentários adicionais. Em síntese, a entrevista de Serra à Isto É deixou mais perceptível o projeto de país do tucano – que é um projeto bem distinto, diga-se de passagem, do defendido pelo governo Lula e por sua candidata, Dilma Rousseff. A máscara do Serra “pós-Lula” parece que foi abandonada definitivamente e, agora, o Serra “anti-Lula” começa a mostrar qual a diferença de seu projeto com o projeto existente atualmente no Brasil. Vamos conferir se Serra sustentará esta estratégia ao longo da campanha.

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