domingo, 28 de novembro de 2010

Transformação do PT ajudou a consolidar democracia no Brasil, avalia cientista política

Reproduzimos abaixo a entrevista dada pela cientista política Wendy Hunter, da Universidade de Austin, no Texas, à Folha de São Paulo, publicada na edição deste domingo, 28. Hunter é estudiosa das transformações políticas e institucionais da América Latina nos últimos anos, sobretudo após a queda dos governos militares nesta região do continente. Ela acaba de lançar um livro intitulado “A transformação do Partido dos Trabalhadores no Brasil, 1989-2009”, onde procura fazer uma análise das mudanças sofridas pelo PT – hoje maior partido de esquerda da América Latina – da primeira eleição presidencial disputada até os dias de hoje.

O desafio ao qual se propõe é, evidentemente, grande, uma vez que explicar os rumos de um partido tão dinâmico quanto o PT sem cair em armadilhas teóricas ou até mesmo sem análises equivocadas é tarefa árdua. De qualquer forma, em sua entrevista dada à Folha, Wendy Hunter destacou essa tendência à moderação verificada no PT sobretudo após 1994, quando o partido começou a se desradicalizar e abrir canais de diálogo com outras forças políticas. Hunter destaca acertadamente, por exemplo, que “a transformação do PT se deu junto e contribuiu para a consolidação da democracia no Brasil”.

Por outro lado, a cientista política cai na velha armadilha da crítica moral ao Partido dos Trabalhadores quando diz que “o PT certamente abandonou muito de sua velha ênfase no ‘governo ético’ para jogar o jogo duro da política no Brasil”. Essa afirmação dá arsenal para um debate de horas, mas para sermos breve podemos dizer que trata-se de uma afirmação equivocada pois o PT não abandonou o seu compromisso com governos éticos. Simplesmente, o partido deixou de lado o foco neste discurso, uma vez que houve a compreensão de que a ética não está no centro do debate político: é falacioso disputar política com base em argumentos morais, já que o centro da política é a disputa de projetos de governo.

A cientista política também se equivoca quando diz, em outro momento, que movimentos sociais historicamente ligados ao PT estão desmobilizados. De qualquer forma, vale a pena ler com atenção a entrevista publicada pela Folha na edição deste domingo. Como dito acima, este blog concorda com várias análises de Wendy Hunter e discorda de várias, mas se formos analisar uma a uma aqui, necessitaremos de inúmeros parágrafos para dar conta do serviço. Confira abaixo a entrevista de Wendy Hunter:

Folha - A sra. acaba de publicar um livro em que estuda as transformações por que passou o PT desde 1989. Quais as principais mudanças?
Wendy Hunter - O PT mudou a ponto de ficar quase irreconhecível em relação ao que era na década de 1980. Um dos primeiros e mais óbvios aspectos diz respeito à moderação ideológica do partido, que pode ser percebida não apenas nos seus programas, mas também em suas políticas de governo. A expansão eleitoral do PT em todas as esferas de governo foi extraordinária. O PT cresceu lenta e consistentemente. Este último ponto é importante porque muitos partidos de esquerda na América Latina tiveram um crescimento espetacular seguido de uma queda tão rápida quanto a ascensão.

As alianças que o PT faz hoje seriam inimagináveis há 20 anos. A flexibilização do compromisso de fazer alianças apenas com partidos de esquerda foi impressionante, mesmo num país conhecido pelas coligações oportunistas. Tome como exemplo os dois últimos vice-presidentes: José Alencar (PL) e Michel Temer (PMDB). Aliás, a atual posição do PT em relação ao PMDB, em comparação com a distância que outrora mantinha, mostra bem o quanto um processo de "normalização" ocorreu com o partido. Basta lembrar que a história teria sido diferente se os 4,7% obtidos por Ulysses Guimarães em 1989 tivessem ido para Lula.

A eleição de Dilma Rousseff também faz parte desse "pacote" de mudanças?
Sim, é um ponto importante a ser levado em consideração o tipo de candidato que o PT lança atualmente. O simples fato de que a candidata à Presidência neste ano foi alguém que ingressou no partido há pouco tempo - dez anos - é testemunha dessas mudanças. Além disso, há diversos candidatos que não vieram do sindicalismo ou dos movimentos sociais, por exemplo. Antes, regras internas determinavam que os candidatos deveriam ou ser fundadores do PT ou ter participado das redes sociais do partido. Isso mudou muito.

Lula foi a principal figura do PT durante todo esse tempo. Qual sua participação nesse processo de transformação?
Lula teve um papel central na administração e na promoção de mudanças no PT. Transformações programáticas que partidos fazem - por exemplo, o afastamento do socialismo e a aproximação do mercado - precisam encontrar apoio não só no eleitorado mas também dentro da própria legenda. Lula foi figura crucial ao encorajar o partido a ouvir mais o eleitorado e suas aspirações, sobretudo após a derrota de 1994 para Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e as muitas mudanças econômicas positivas que ocorreram na era FHC. Ao mesmo tempo, Lula foi sensível às lutas e às dinâmicas internas do PT e soube conduzi-las de forma a apoiar um caminho moderado. Felipe González, na Espanha, e Nelson Mandela, na África do Sul, podem ser vistos de forma semelhante.

E que papel ele deve ter como ex-presidente?
Não creio que ele vá simplesmente se aposentar e ficar calado. Tampouco acredito que vá se envolver com assuntos menores da administração e do novo governo. Acho que Lula terá um papel crucial na mediação dos conflitos que podem surgir entre o partido e o governo Dilma. Lula tem muito mais força pessoal do que Dilma, e a relação que ele tem com o PT e suas várias correntes é muito mais profunda. Mas é importante destacar que Dilma terá a sua cota de desafios políticos à frente. O fato de que a oposição controla tantos Estados - alguns muito importantes - será uma fonte de desafios. Teremos que ver como ela lidará com essa oposição. Sabíamos muito mais sobre Lula e seu estilo de negociação política antes de ele chegar ao poder do que sabemos agora sobre Dilma.

O que podemos esperar do PT durante o governo Dilma? As tendências mais radicais ganharão mais espaço?
Acho que o PT está bem firme nas mãos dos moderados. Se olharmos as eleições internas do partido, veremos que não parece haver muito apoio às opções radicais. O fato de que as figuras históricas ligadas aos antigos valores e plataformas do PT não vençam nessas disputas internas sugere que boa parte da base tornou-se moderada junto com os líderes. Os movimentos sociais historicamente associados ao PT também parecem bastante desmobilizados. Por exemplo, há sinais de que, com a penetração de programas de assistência social, como o Bolsa Família, organizações como o MST já não conseguem conquistar adeptos como conseguiam antes.

Por fim, as evidências sugerem que o PT está "em boas mãos" na máquina do Estado. Dilma, com suas tendências estatizantes, provavelmente não reduzirá o tamanho do Estado, o que encolheria os postos do partido.

O PT cresceu muito e hoje é a maior bancada da Câmara. O PT será o próximo PMDB?
Não acho que o PT vá se tornar um partido de sustentação no sentido que tem sido o PMDB: fraco ideologicamente, aberto a fazer alianças com qualquer um e com grandes diferenças entre seus políticos. Acho que o PT ainda mantém diferenciais o suficiente para não regredir para algo desse gênero. É claro que o governo Dilma deverá seguir a lógica do presidencialismo de coalizão em alguma medida, ainda mais que o primeiro governo Lula, mas diria que haverá muitos nomes do PT entre os próximos ministros.

Por outro lado, o vigoroso apoio do governo Lula nos Estados menos desenvolvidos e seu relativo enfraquecimento nas áreas mais desenvolvidas - em parte resultado dos padrões de gasto dos governos Lula - certamente sugerem uma inversão na base de apoio histórica do PT e um movimento para se tornar um partido mais parecido com o PMDB.

A sra. concorda com quem diz que o PT se tornou um partido cuja principal preocupação é a manutenção do poder?
Eu não iria tão longe. Todos os partidos precisam se manter no poder e sobreviver politicamente para atingir outros objetivos. Sim, o PT certamente abandonou muito de sua velha ênfase no "governo ético" para jogar o jogo duro da política no Brasil. Mas é preciso considerar também um outro aspecto, o qual coloca pelo menos Lula se não o partido em uma perspectiva mais positiva. Enquanto o PT e o governo Lula têm sido criticados por se desviarem de seus compromissos históricos com os mais pobres e marginalizados, eles têm implementado políticas que de fato levaram a uma significante redução da pobreza, com avanços no cenário da desigualdade.

Então, desse ponto de vista, eles fizeram uma diferença positiva em direção as suas metas iniciais, ainda que não exatamente por meio das políticas que defendiam no passado.

Na sua avaliação, as transformações ocorridas no PT foram positivas ou negativas?
Um pouco de cada. De um lado, o sistema político perde por não ter um partido que se apegue à bandeira de um governo mais ético. Parece preocupante que a eleição de Dilma tenha se baseado tanto no uso da máquina por um presidente da República que é do mesmo partido. E atitudes do PT em eventos-chave, como a absolvição de José Sarney, não são positivas no que diz respeito a um governo melhor. Por outro lado, a transformação do PT se deu junto com e contribuiu para a consolidação da democracia no Brasil.

O PT no poder - o que, por si só, só poderia acontecer como resultado de sua transformação, ou normalização (a aceitação pelo PT tanto do mercado quanto da lógica da política brasileira) - continuou e aprofundou tendências de redução da pobreza e da desigualdade social. O ponto é: talvez um governo de esquerda mais radical pudesse ter feito mais nessas dimensões, mas as conquistas da esquerda moderada, como as de Michelle Bachelet [ex-presidente do Chile] e Lula, pelo menos serão mais sustentáveis devido à solidez maior da base fiscal e do apoio político.

Como as mudanças por que passou o PT "conversam" com as transformações ocorridas na sociedade brasileira?
Às vezes é necessário dar um passo atrás para pensar as eleições de 1989 em comparação com as atuais. Na disputa entre Lula e Fernando Collor de Mello, os principais meios de comunicação claramente anunciavam uma catástrofe caso Lula vencesse. Os militares mantiverem os olhos bem abertos naquela eleição. Os mercados financeiros estavam "apavorados". Em resumo, a atmosfera era muito polarizada entre duas figuras cujos partidos não tinham muitas cadeiras no Congresso Nacional.

Agora, atores externos à disputa ficam afastados. Por exemplo, a Globo não tem papel central na tentativa de determinar o resultado. Os militares se mantêm completamente ausentes. Após 2002, a comunidade financeira já não ameaça tirar o dinheiro do país caso a esquerda vença. Em resumo, a democracia brasileira se consolidou nos últimos 20 anos. Os três principais candidatos deste ano foram pessoas sérias com sólidos currículos e plataformas políticas críveis. O mesmo não pode ser dito a respeito de muitos outros países. O Brasil realmente pode ficar orgulhoso de quão longe chegou.

Na década de 1980, quem acreditaria que o PT teria o governador da Bahia ou que o candidato à Presidência pelo partido teria um apoio tão maciço no Maranhão? Naquela época, analistas, brasileiros e estrangeiros, escreviam livros sobre a persistência do poder dos militares e da direita. As máquinas oligárquicas de Antonio Carlos Magalhães e outros políticos nordestinos davam a impressão de que permaneceriam por um longo período. No entanto, a nova geração de cientistas políticos está ocupada escrevendo livros sobre o declínio do clientelismo nesses lugares. Sim, é claro que o PT se adaptou para caber na lógica da política brasileira, mas quem duvidar de que mudanças significativas podem acontecer deveria pensar uma segunda vez.

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