terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Desarquivando o Brasil: o acesso à informação como fator crucial de afirmação da democracia

O debate acerca da democracia deve levar em conta que ela não é estanque, mas sim fruto de um processo de construção ao longo do tempo. Assim, o grande desafio que se coloca à vivência democrática é a sua constante afirmação, através do fortalecimento de suas instituições e sem o risco de retrocessos. Neste sentido, poderíamos estabelecer aqui uma analogia entre o processo democrático e um carro em movimento. Da mesma forma que a boa condução de um carro exige que o motorista faça uso tanto do pára-brisa quanto do retrovisor, o aperfeiçoamento e fortalecimento da democracia só ocorrem mediante um projeto para o futuro que leve em conta tudo que passou e que foi acumulado em termos de experiências históricas, sociais e políticas até aquele momento.

Se observarmos o “retrovisor” da História poderemos entender facilmente porque a utopia democrática é tão forte e perene em nossa sociedade. A democracia não é, neste sentido, fruto de uma mera conjuntura política e eleitoral, tampouco representa apenas uma formalidade. A deflagração do processo de construção de nossa democracia se deu através de um intenso embate político, que envolveu batalhas, torturas e muito derramamento de sangue. Talvez, se tivesse sido diferente e a democracia surgido como obra do acaso ou do consenso, hoje a nossa percepção acerca da vida democrática não fosse tão sólida e valorosa. Assim, dentro desse processo constante de reafirmação da democracia é que devemos sempre manter os olhos atentos ao retrovisor, compreendendo o passado para seguirmos bem no futuro.

Por essa razão, é de extrema importância para a própria vida democrática que haja um profundo conhecimento acerca do período em que ela não existia – os chamados “anos de chumbo”, entre 1964 e 1985. Embora a ditadura militar tenha acabado, muito pouco se sabe ainda sobre as torturas, as mortes, os desaparecimentos e outros atentados cometidos pelo regime de exceção. Isso porque a quase totalidade dos documentos do regime militar ainda não foi divulgada, estando sob posse das Forças Armadas. Ora, todos nós sabemos que a concepção básica de democracia assenta-se sobre dois pilares fundamentais: a soberania popular e a constituição de direitos. Esses dois pilares funcionam como “pernas” para o sistema democrático: se uma dessas pernas “trava”, a democracia como um todo é atingida.

Informação é um bem público
E é justamente nesse contexto que colocamos a discussão sobre a abertura dos arquivos da ditadura e a criação de uma Comissão da Verdade. Quando o governo não se esforça para aprovar no Congresso a abertura irrestrita dos arquivos da ditadura militar ele está ferindo uma dessas pernas da democracia e, conseqüentemente, prejudicando o caminhar da vida democrática. Afinal de contas, a informação deve ser vista como um bem público, o que a torna, portanto, universalizada. Não há como falarmos em afirmação da democracia se um direito fundamental do cidadão – como a informação – ainda é desrespeitado. É preciso, neste sentido, como condição para exercício pleno da cidadania, que a informação seja transparente, irrestrita e acessível.

Quando falamos em informação nos termos colocados acima estamos reforçando a idéia de que não faz sentido nenhum, 25 anos depois da redemocratização, ainda termos documentos do período militar classificados como secretos, ultra-secretos ou restritos. Permitir que esses arquivos continuem fechados, longe das vistas da população, é negar à sociedade um direito fundamental e, portanto, inibir o avanço democrático. Afinal de contas, se as pessoas não compreendem exatamente o que aconteceu no seu passado, que valor darão à democracia? Como se espera afirmar um sistema democrático que esconde da sociedade parte de sua História? O leitor poderá perguntar nessa altura do texto: mas o que de tão importante têm esses documentos para se pregar essa ampla defesa à sua abertura?

Devemos considerar, para responder a esta questão, que a abertura dos arquivos da ditadura é importante por revelar basicamente duas histórias: primeiramente, a história contada pelos documentos propriamente ditos; e em segundo lugar, a história de como foram sendo construídos esses documentos. Ou seja, muito mais que saber o que aconteceu, é importante saber como aconteceu. E todas essas respostas, como dito anteriormente, encontram-se trancadas dentro de armários em poder das Forças Armadas. É como se o governo, ao permitir que isso aconteça, impeça o cidadão brasileiro de fazer uso dessa informação que lhe é de direito. Manter esses documentos escondidos é inibir a possibilidade histórica de o cidadão usá-los, enquanto sujeito do processo da dialética da informação, para construir o futuro da sociedade brasileira.

Comissão da Verdade é condição de afirmação democrática
Tão importante quanto a abertura dos arquivos da ditadura é a instalação imediata de uma Comissão da Verdade, para apurar o que de fato aconteceu durante o regime militar e impedir que isso aconteça novamente. Um projeto de lei que cria a Comissão da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República está em tramitação na Câmara dos Deputados desde maio do ano passado. A proposta do PL é esclarecer os casos de violação aos direitos humanos ocorridos no Brasil entre 1946 e 1988, incluindo aí a autoria de torturas, mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres. A criação dessa Comissão é extremamente urgente, uma vez que, como já foi dito anteriormente, enquanto o Brasil não apurar o que de fato aconteceu no seu passado não podemos falar em democracia plena nesse país.

Vale lembrar que, dentre os países envolvidos na Operação Condor (aliança de vários regimes militares da América do Sul, como Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai, para coordenar repressão a opositores de extrema esquerda), apenas o Brasil ainda não adotou uma Comissão da Verdade. E é importante que essa comissão seja criada não apenas para cumprir obrigações de investigação cobrada nos meios internacionais, mas sim por uma consciência coletiva de que o fortalecimento de nossas instituições democráticas passa necessariamente pela investigação irrestrita, doa a quem doer, do que aconteceu em um passado não muito distante.

Os que são contra a Comissão da Verdade alegam que sua instalação prejudica a estabilidade política e constitui um desrespeito a Lei da Anistia, de 1979, que serviu tanto para os militantes de grupos de esquerda como para os próprios torturadores. A essas vozes do atraso devemos lembrar que, em relação ao primeiro argumento, todos os países que adotaram Comissões da Verdade tiveram resultados muito positivos para sua democracia. Nesses países, a Comissão da Verdade serviu, de certa forma, para relegitimar suas instituições. Sobre o “desrespeito” à Lei da Anistia, devemos lembrar que o projeto aprovado naquela época não foi fruto de um amplo entendimento político e social. Tanto é que o projeto da oposição (representada pelo MDB) perdeu na Câmara por apenas cinco votos.

Não há nada, neste sentido, que justifique a não-abertura dos arquivos da ditadura e a não-instalação de uma Comissão da Verdade. É preciso, para o bom andamento da democracia, que sejam investigados e punidos todos os crimes cometidos contra os direitos humanos durante os anos de chumbo no país. Esse reencontro do Brasil com sua própria História é extremamente salutar à democracia como um todo e, caso não ocorra, o país estará perpetuando a impunidade e a tortura, ao mesmo tempo em que estará retrocedendo no campo democrático. Desarquiva, Brasil!

Um comentário:

  1. De fato,a abertura dos arquivos do período da ditadura militar e um direito que o povo brasileiro tem de conhecer mais sobre esse período ditatorial da história brasileira.Uma leitura interessante e o livro:Brasil Nunca Mais,que relata as torturas e as medidas arbitrárias e autoritárias do governo golpista.
    Ainda tem muitas coisas que não sabemos sobre aquele período,e a abertura dos arquivos com os documentos daquele tempo e fundamental para que possamos conhecer melhor o que ocorreu nos anos de "chumbo"da ditadura militar.

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